sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

NO MELHOR PANO CAI O NODDY


























Entrevistas impossíveis por JAR



Não foi fácil conseguir esta entrevista. Não só porque se trata de uma entrevista impossível, mas também porque o boneco andava muito atarefado com o início das aulas. “É a altura do ano em que tenho mais trabalho”. A proposição era facilmente verificável. Não havia hipermercado ou loja de brinquedos onde o gajo não estivesse. Eram prateleiras e prateleiras apinhadas com cadernos do Noddy, livros do Noddy, lápis do Noddy, canetas do Noddy, tudo-e-mais-alguma-coisa do Noddy. O boneco tinha o dom da ubiquidade e estava por todo o lado.

Mas eu estava decidido. Era esta a figura a entrevistar. Precisava de saber que personagem era essa que andava a aliciar toda uma geração de futuros contribuintes. Seria uma boa influência? Tomaria drogas? Sairia à noite? Que locais frequentava? Iria à missa? Quais os seus gostos sexuais? Faria sexo em grupo? Que música ouvia?

Decidi, por isso, insistir. E depois de muito lhe telefonar, acabei por conseguir a entrevista. Marcamos encontro no hiper da Amadora. O boneco andava em digressão pelo Centros Comerciais do país numa espécie de concentração tuning de jovens pais e carrinhos de bebé. “Encontro-me contigo na praça da alimentação”. Foi o combinado. Mas para grande espanto meu apareceu um boneco todo branco:

- Não era suposto usares umas roupas mais coloridas? – perguntei intrigado.

- Sim, habitualmente uso umas roupas vermelhas e amarelas a condizer com o carro. Mas eu hoje sou o Noddy de pintar. É por isso que estou todo de branco.

- Ah!!! – exclamei eu – Por momentos pensei que vinhas de uma dessas festas de fim de verão em que toda a gente se veste de branco. Mas afinal és apenas um boneco para miúdos que já pintam.

- Não, geralmente não vou a esse tipo festas. A não ser que haja crianças. Se houver crianças, é bem provável que me vejas por lá.

Este boneco começava a assustar-me. Tinha 47 anos, insistia em vestir-se de miúdo e conduzia um táxi amarelo, naquilo que mais parecia ser uma versão politicamente correcta do Robert De Niro em Taxi Driver.

- Ó boneco, tu não digas isso dessa forma que ainda arranjas problemas. Além do mais, provoca-me arrepios.

- Isso é da estrica. A mim também me acontece às vezes.

Topei-o logo. Já sei a que tipo de festas o gajo ia. De certeza que tinha ido ao Boom. O gajo tinha arrepios na espinha, amigos gnomos, vivia numa cidade de brinquedos, usava um barrete com guizos, a equação estava feita:

- Foste ao Boom, aposto.

- Não, por acaso este ano não fui. Tenho andado com muito trabalho. Mas já vi todos os vídeos do festival que estão no Youtube. Aquilo está quase a tornar-se num festival respeitável. Não sei se sabes, mas agora há uma zona branca. Chama-se Groove Beach.

- Mas isso é muito pouco psicadélico – fiz questão de salientar – Groove Beach está mais próximo de uma festa na praia do Tamariz do que de um festival independente de expressão artística. Se ainda fosse Groovy Bitch...

- Por falar em Groovy Bitch, viste o vídeo da tipa a dançar toda nua? – perguntou-me o boneco.

- Não, mas já ouvi falar. Acho que a mandaram tapar – fiz questão de referir com alguma decepção.

- Vê tu bem. Aquilo é repressão. Se a rapariga queria dançar nua, qual era o mal? Até porque, sem roupa, o contacto com a natureza é muito maior. O problema é que há sempre um moralista escondido em toda a parte. Até em Idanha-a-Nova.

- Mas tu gostas de Trance? - perguntei.

- Não, odeio. Se é para ouvir barulho, prefiro alguma coisa dentro do Metal. Deves saber que gravei uma versão do Abram Alas para o Noddy, The Lord of Darkness, com os Moonspell. Aquilo correu bem e até deu origem a uma nova tendência: Death Metal for Kids.

- Mas isso não provoca tendências suicidas nos pequenotes?

- É provável que sim. Mas até agora ninguém se queixou – assumiu com indiferença.

- Tu andas a arriscar muito, Noddy. Olha que andei a pesquisar umas coisas sobre ti na net e há lá muita coisa que não abona a teu favor – disse-lhe em tom de aviso.

- Ai sim?!!! – disse ele escarnecendo – então diz-me lá o que é que dizem sobre mim?

- Bom, as opiniões dividem-se. Uns dizem que não passas de um boneco de madeira carcomida, uma má imitação do Pinóquio, e que desejas vingar-te da Humanidade, atormentando as suas crias, só pelo simples facto de a ti nada te crescer. Nem as unhas. Outros, porém, vão mais longe e afirmam que fazes parte de uma seita satânica conhecida por praticar o Culto do Noddy, uma espécie de religião new age, versão infantil, e que o teu único objectivo é conseguires dinheiro para comprar um carro novo.

- Ora aí está um assunto que me interessa. Sabes que me roubaram o carro?

- Roubaram-te o carro? Não me digas que foste vítima de carjacking – referi com surpresa.

- Pois aí está uma coisa que ninguém sabe. Eu sou uma vítima do crime violento.
É sempre assim. Aperta-se com o bandido e ele faz-se de vitima. Eu já conhecia a estratégia e não iria ser apanhado desprevenido.

- Mas isso não é mau de todo – contrariei - podes sempre comprar uma bicicleta. É uma boa forma de contribuíres para a protecção do meio ambiente. Sim, porque aquele teu carro, aos anos que tem, deve poluir e bem. Além do mais, se o Lucky Luke trocou o cigarro por uma flor, tu também podes trocar o teu carro por uma bicicleta. Não és mais do que os outros e até te ficava bem.

Fez-se silêncio. Algo me dizia que esta entrevista estava a chegar ao fim. Noddy fixou-me o olhar e com um brilhozinho nos olhos, segredou:

- Mais uma piada dessas e faço rebentar este cinto de ligas que trago carregado de explosivos.

(texto escrito para o Jornal Lux-Frágil)

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