sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

A GRANDE CABIDELA












Entrevistas impossíveis por JAR


Eram cinco da manhã e o meu telemóvel tocava insistentemente. Levantei-me, estremunhado, e apressei-me a atender a chamada. Do outro lado, alguém gritava:

— Mataram a galinha dos ovos de ouro! Mataram a galinha dos ovos de ouro! Mataram a galinha dos ovos de ouro!

Repetiram assim mesmo – três vezes. Eu, aturdido, dei dois passos atrás e sentei-me na beira da cama. Numa espécie de experiência do eterno retorno, acabava de confirmar a estranha tendência da humanidade para repetir a sua história no que ela tem de pior: acabar com a galinha dos ovos de ouro.

— Mas como? – perguntei eu ainda incrédulo – Foi com a gripe das aves? Bem que eu lhe disse para se agasalhar…

— Não, nada disso. Desta vez o H5N1 não teve nada a ver com o assunto. Consta que foi sobrealimentada pela mão invisível do mercado. Comeu tanto que rebentou. Aconteceu tudo no galinheiro de Wall Street. Um espectáculo medonho. Sangue por todo o lado.

Assistimos hoje a várias tragédias humanas, mas os meus ouvidos eram demasiado frágeis para ouvir tamanha atrocidade. Eu estava destroçado.

— Mas quem é você? – perguntei intrigado.

— Não lhe posso dizer. Pediram-me só para o avisar que o arroz de cabidela à La Subprime irá ser servido ao fim da tarde; mais ou menos por volta das seis.
Grandes comedeirões! O animal acabara de morrer e já se preparavam para lhe roer os ossos. A coisa não haveria de ficar assim. Era necessário apurar responsabilidades. Fazer queixa à Liga Protectora dos Animais ou mesmo à ASAE, já que a cabidela é proibida. Como iriam ser os nossos dias daqui para a frente? Certamente difíceis, agora que parecia não ser mais possível contar com o ovo no cu da galinha. E se há galinhas para matar! Podiam ter matado a galinha de ovos de chocolate, por exemplo, que faz mal aos dentes; ou a galinha dos ovos moles, por causa do colesterol. Mas não. Tinha de ser a dos ovos de ouro. Porquê? Sempre gostava de saber a razão desta tendência. A verdade é que nunca ninguém ouviu falar da morte da galinha dos ovos de prata, de bronze ou de platina. Ou mesmo na morte da galinha dos ovos Kinder Surpresa. E se me interrogo desta forma, não é por a galinha ter morrido, mas pelo tempo que demora arranjar outra. Recordei-me então da última vez que a entrevistei. O animal parecia que adivinhava:

— Um dia destes acabam comigo – dizia resignada.

— Acha que isso é mesmo inevitável? Talvez fosse melhor pedir uma escolta policial.

— Não adianta. É o que acontece sempre. Faz parte da condição humana. É como respirar. Nem se dá por isso. Um dia a humanidade acorda e percebe que eu morri.

— A humanidade talvez seja muita gente, se considerarmos que metade do mundo nunca viu um ovo à frente, muito menos de ouro.

— O problema do sistema dos ovos de ouro é que nunca há ovos para todos.
E depois há sempre aqueles que ficam com mais ovos do que outros. É a chamada lei do mercado. Os ovos tendem a acumular-se nas mãos de poucos.

— Mas não há forma de haver ovos para todos? Ou pelo menos fazer com que eles possam ser melhor redistribuídos. Criar regras, por exemplo. Ou então, nacionalizar os ovos de ouro.

— Eu sou uma galinha livre e com muita regulamentação tendo a pôr poucos ovos. Mas nas mãos do Estado ainda é pior. Chego mesmo a deixar de pôr.

— Compreendo. Eu também não gosto muito de me sentir apertado. Mas já experimentou explicar às pessoas que vós, galinhas dos ovos de ouro, por dentro só têm tripas e miudagens como as outras?

— Sim, mas não adianta. Vêm sempre com aquela conversa: “Se eu fosse o dono da galinha guardava os ovos numa arca de tesouros. Tratava-a muito bem, cuidava dela. Ao fim do dia recolhia o ovo e dava–lhe de comer. Quando ficasse rico comprava um castelo, contratava muitos empregados e pagava-lhes bons ordenados. Gostaria de ver toda a gente feliz à minha volta”. É nesta altura, geralmente, que me espetam a faca no pescoço.

— Coitada – disse eu enojado – que triste fim.
A triste imagem da galinha degolada fez-me acordar. Tinha de me despachar para a cabidela à La Subprime. Fui informado por SMS que seria servida na cantina da Bolsa de Lisboa. Apanhei um Táxi e fiz-me à estrada.

Quando cheguei, deparei-me com uma manifestação de protesto contra o aumento do preço do milho. Depois de algum esforço, apertos e empurrões lá consegui entrar. O ambiente, um tanto ao quanto dúbio, oscilava entre a euforia dos ganhos e a desolação das perdas. No ar, o cheiro a vinagre dava a tudo aquilo um certo sabor amargo. Um grande tacho, onde jaziam os restos mortais da galinha dos ovos de ouro, ocupava o centro do refeitório. À volta dele um grupo de velhas senhoras, elegantemente vestidas de preto, como convém nestes momentos, rezava o terço e pedia milagres. Estavam ainda presentes altos funcionários do estado, deputados e alguns ministros. Havia ainda um grupo de maus artistas, jornalistas, oportunistas, banqueiros, correctores e outros membros da alta finança, todos muito abatidos. A tudo isto não faltou o representante da igreja, que olhou para aquilo com ar de tanga: “Morreu a galinha? Solte-se a franga”.

(texto escrito para o Jornal Lux-Frágil)

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