quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Histórias das ideias no dance floor

ANDAR A MILL


Ilustração: Ricardo Gaspar



“É preferível ser um homem insatisfeito
do que um porco satisfeito.”

J. S. Mill (1806-1870)


Se a filosofia fosse uma droga, John Stuart Mill seria “uma boa” grama de coca. Não que o seu pensamento se tenha transformado em pó e não nos reste outra alternativa senão fazer o mesmo que Keith Richards fez com as cinzas do pai. Nada disso. Mas a verdade é que depois dele uma boa parte da humanidade passou a andar a um ritmo nunca antes observado.

Devo, por isso, avisar o leitor: o contacto com as grandes linhas do pensamento de Stuart Mill pode provocar uma sensação de euforia, prazer e excitação sexual, seguida de um estado de ansiedade e depressão profunda. A partir daqui, o leitor está por sua conta e risco, não podendo dizer que não o avisei. Decidiu continuar? Então, prepare-se para a ressaca.

Como todos os homens bons, John Stuart Mill nasceu em Londres, no início do séc. XIX, e ficou para a história do pensamento como o mais útil dos filósofos, embora nos dias de hoje ninguém saiba muito bem o que fazer com ele. Juntamente com Jeremy Bentham e James Mill, que era seu pai, foi um dos percursores do utilitarismo, corrente filosófica que põe no centro da moral e da política a ideia de felicidade e de prazer.

Apesar de Stuart Mill ser um ilustre desconhecido, o utilitarismo é a corrente filosófica que reúne maior consenso nos dias de hoje. Com excepção dos sadomasoquistas, todas as pessoas têm o seu lado utilitarista, mesmo que o ignorem ou o tentem disfarçar. E isto porque o utilitarismo defende aquilo que parece ser a mais básica das ideias: o prazer é uma coisa boa e a dor uma coisa má.

Quando o utilitarismo começou a bombar nas pistas de dança e a passar nas rádios, a música não era completamente nova, uma vez que já fazia parte dos sucessos dos Epicuristas, um dos grupos mais conhecidos na Grécia Antiga. Apesar disso, acabaria por soar estranho à maioria das pessoas. Mas há que reconhecer: afirmar que a felicidade é a maximização do prazer e a liberdade o direito inalienável de a podermos alcançar não é música para todos os ouvidos. Porém, a moda haveria de pegar.

E pegou. Ao fim de alguns anos, Stuart Mill acabaria por se transformar no filósofo padroeiro das sociedades modernas e da cultura hedonista, e o utilitarismo tornar-se-ia a música mais ouvida nas pistas de dança, mesmo antes de haver pistas de dança.

Depois do sucesso do utilitarismo, a felicidade era objectivo essencial das nossas vidas. A questão estava em saber onde encontrá-la: no centro comercial ou no dealer mais próximo? Esta passou a ser a nossa dúvida existencial. E com o tempo, as nossas vidas acabariam por se transformar num deprimente episódio d’ O Sexo e a Cidade, mas com droga, onde as personagens hesitam entre o homem, o par de sapatos e o dealer que lhes vai mudar a vida. O importante é ser feliz.

E Stuart Mill sabia isso melhor do que ninguém. Em 1830 conhece Harriet Taylor, casada e mãe de dois filhos. Harriet seria a sua grande paixão e o seu grande amor. Sofre um desgosto amoroso e espera 20 anos para casar com ela. Como naquela altura não havia centros comerciais e viajar demorava mesmo muito tempo, o mais útil dos filósofos decidiu ir para o parlamento defender todas as formas de expressão da liberdade, com o objectivo de ocupar o tempo. E que útil isso nos foi!

Eleito para o parlamento inglês em 1865, Stuart Mill aproveita o momento para lançar o Everybody's Free (To Feel Good), tema que anos depois haveria de ser recuperado por Rozalla. Simultaneamente, faz campanhas a defender o direito de voto das mulheres, o controlo da natalidade, a contracepção, o divórcio, o fim da escravatura, o sufrágio universal e a abolição da pena de morte. Acusam-no de radical. É preso.

Porém, Mill não desiste. E vai mais longe: passa a defender o direito de cada um ter os seus Nike ID. A liberdade era isso: o poder de cada um exprimir a sua individualidade, a sua diferença, a sua originalidade.

Conquistado o direito a cada um ter o seu par de ténis personalizados, a factura acabaria por chegar: o I feel good do James Brown acabaria dar lugar ao (I can get no) satisfaction, dos Stones, para terminar com o Just because you feel good, doesn't make you right, dos Skunk Anansie. A vertigem do prazer dava agora lugar ao medo de sofrer. De repente descobrimos que não basta ser feliz. Mais: descobrimos que nada nos pode tornar mais infelizes do que a busca da felicidade. Principalmente quando a droga é má e as bebidas são maradas. Ficamos confusos. Desesperamos. E entramos na onda do vale tudo. Até passar a canção do beijinho.
Depois disto, vieram os profetas da desgraça, o Lipovetsky e a Era do Vazio. Caro leitor, bem-vindo à pós-modernidade. Eu avisei que isto ia dar ressaca.

JR

(escrito para a blah, blah, blah - revista do Lux-Frágil - em Julho de 2008)

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