segunda-feira, 23 de junho de 2008

Histórias das ideias no dance floor
DESCARTES’S NOT DEAD




Facto Histórico: Descartes era mesmo muito feio.
Ilustração: Vanessa Teodoro



“Cogito ergo sum”
René Descartes
(1596-1650)


Descartes é aquele filósofo que toda a gente conhece por duas ordens de razões: ou porque ouviu falar muito vagamente dele na escola, ou porque tem um primo que o estudou muito vagamente e também na escola. Tirando o facto da de a escola não ser a mesma, pouco há a acrescentar sobre isto, a não ser que este parágrafo mostra a minha total dificuldade em trazer o filósofo para a pista de dança.

É verdade. Desengane-se o leitor. Não consigo. Ao preparar-me para escrever este artigo descobri-me um cartesiano primário, o que me impede de pôr o filósofo a tocar, não porque Descartes esteja riscado, mas antes porque fiquei com a minha agulha partida. Fica, portanto, o leitor avisado, que : aquilo que agora se segue é a mais pura das bajulações àquele que ficou para a história como o mais moderno dos filósofos. E isto sem nunca ter usado roupa de marca.

Descartes era um porreiro, um fixe, um baril. Um gajo cheio de boa onda, que se esforçou por retirar o pessoal da idade média, esse período repleto de ignorância e obscuridade, que tende a reaparecer em muitas cabeças mesmo nos dias de hoje. Se defeitos tinha, era o de ser francês, mulherengo e preguiçoso. O que de resto, lhe haveria de ser fatal.

A obrigação de dar aulas de filosofia à rainha Cristina da Suécia todos os dias às cinco da manhã, durante um inverno excepcionalmente rigoroso, contrariando o seu velho hábito de acordar tarde, acabaria por lhe provocar a morte por pneumonia. O velho adágio ‘deitar cedo e cedo erguer’ pode fazer parte da filosofia para jovens, mas não faz, com toda a certeza, parte da filosofia cartesiana.

Descartes era um grande preguiçoso e sempre gostou de fazer pouco ou quase nada. É o próprio que o confessa à princesa Elisabeth da Boémia, a quem aconselha a fazer o mesmo. Já em miúdo, nos tempos em que frequentou o La Flèche, os jesuítas lhe haviam atribuído atribuíram-lhe um regime especial, permitindo-lhe que se levantasse quando queria e lhe apetecia. O que de resto vem provar que respeitar os ritmos próprios de cada um faz muito bem ao génio. E Descartes tinha um grande.

Tinha um génio tão grande, que as mulheres não o largavam. E a sua fama de mulherengo chegou até aos dias hoje, inspirando títulos como “As minhas noites com Descartes”, “Descartes, as mulheres e a filosofia”, ou ainda “Descartes e suas amizades femininas”, só para citar alguns. Fosse por puro interesse sexual ou mera curiosidade intelectual, a verdade é que René se correspondeu com princesas e rainhas, seduzindo-as com as suas posições modernas e movimentos mecânicos. Qual homem da Regisconta, Descartes era aquela máquina.

Mas se houve um tempo em o nosso filósofo facturava, hoje o seu pensamento encontra-se afastado das passerelles filosóficas da moda. Nos verdúnculos dias de hoje, em que a defesa do ambiente se tornou num pesadelo maior e mais difícil de suportar que o próprio buraco da camada do ozono, o mecanicismo cartesiano acabou por se tornar num bode expiatório, também ele mecânico, de todos os crimes ambientais.

Não vou pedir a um ambientalista que se exprima “como um motor se exprime”, que seja tão “completo como uma máquina”, “tão triunfante como um automóvel último-modelo”, que se acaricie com Álvaro de Campos, masturbe com a Ode Triunfal, com o “r-r-r-r-r-r-r eterno!”, e se venha com o triunfo da máquina e da energia mecânica.

Muito menos que perceba a música dos Kraftwerk, se transcenda ao som de we are the robots, ou seja capaz de ter ideias tão claras e distintas como a simples constatação I'm the operator with my pocket calculator. Não vou pedir, porque no máximo dos máximos ele só chega ao “Olha o robot!”, dos Salada de Fruta, cantado pela Lena d’Água.

Alem disso, também não quero incomodar tão verdoso ser no seu esforçado intento de “pensar como uma montanha”, ou na sua heróica missão de libertar todos os porcos e galinhas da tão ‘horrível’ dominação humana.

No espírito zoófilo que caracteriza os nossos tempos, afirmar a distinção entre humanidade e animalidade é um crime horrendo, muito pior que bater na mãe ou cuspir na sopa. Mas não se engane o leitor: não há nada de altruísta no amor cego aos animais, apenas um profundo ódio a tudo o que é humano.

Mas voltemos a Descartes. Descartes’s not dead! Ele que sempre foi um homem de certezas e que haveria de ficar universalmente conhecido por afirmar “penso, logo existo”, a única proposição que reconhecia como certa, apenas porque confirmada pela método da dúvida.

Esta concisa e simples afirmação, que toda a gente conhece de cor como a tabuada, teve o poder de demonstrar que um homem que duvida é um homem que pensa, e um homem que pensa é um homem que existe, afirmando assim o exercício do pensamento como fundamento da nossa relação com o mundo. Como diria um amigo meu, a palavra do mês é: pensar!

JR

(escrito para a blah, blah, blah - revista do Lux-Frágil - em Maio de 2008)


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