domingo, 6 de abril de 2008

Histórias das ideias no dance floor

DIÓGENES DOGGY DOGG

Facto histórico: Diógenes não tinha pêlo.
Ilustração: Jorge Trindade

“Eu sou um cidadão do Mundo.”
Diógenes de Sínope (404-323 a.C.)

Sempre que o leitor der uma (ou levar, porque também se pode dar o caso) à canzana, lembre-se de Diógenes de Sínope. Não que Diógenes seja alguém muito interessante para ter em mente em tão decisivo momento - todos temos vizinhos e vizinhas bem melhores - porém, o leitor fará o favor de concordar, que é o mínimo que se pode fazer, para homenagear aquele que foi o maior dos precursores de um estilo que, ainda hoje, faz as delícias de grande parte da humanidade – o doggy style.

O doggy style nasceu na Grécia, quatro séculos antes de Cristo, num ginásio à época muito frequentado, o que de resto faz todo o sentido.

Situado nos arredores de Atenas, o ginásio de Cinosargos terá sido o local onde Antístenes, discípulo de Górgias e de Sócrates (o filósofo), iniciou aquele que é um dos mais antigos movimentos da história das ideias da cultura ocidental: o cinismo. O termo Cinosargos significa literalmente “cão ágil”, “cão brilhante”, “verdadeiro cão”, e permitiu designar por cínicos (cães) os adeptos deste movimento.

Apesar de o cinismo ter sido um movimento iniciado por Antístenes, foi Diógenes, seu discípulo, o criador do verdadeiro modelo cínico, por ter assumido este ideal como ninguém. O desprezo pela vida em sociedade e pelas convenções sociais fizeram dele uma espécie de Michael Jackson da antiguidade clássica, com menos plásticas, é certo, mas igualmente anedótico e incompreendido, como só os génios podem ser, aos olhos do comum dos mortais.

Diógenes, o cão, como haveria de ficar conhecido, foi o mais excêntrico dos filósofos gregos e sobre ele contam-se as mais variadas histórias. Segundo consta, optou por viver num pipo, na maior das misérias, sendo um alforge, um bastão e uma tigela os seus únicos bens. Vivia de mão estendida, mas isso não o impedia de desafiar tudo e todos: - “Ei tu, ó gordo, estás-me a ouvir? Dás-me alguma coisa para comer? Em vez de encheres o bandulho, farias melhor dares-me alguma comida! Olha que tenho fome!”

Como o leitor deve imaginar, este tipo de comportamento não lhe trouxe muitos amigos, e o insulto ao Diógenes acabaria por se transformar, muito rapidamente, num dos desportos favoritos dos atenienses, facto que não o preocupava muito: antes sozinho e faminto do que membro da carneirada de Atenas - mendigo sim; bajulador é que nunca.

Outra das actividades a que Diógenes se dedicava era a caça aos homens. Segundo consta, o nosso cínico passeava-se durante o dia pelas ruas de Atenas, de candeia acesa na mão, à procura – como eu o compreendo! – do verdadeiro homem. Infelizmente, desconhece-se que o tenha encontrado.

Sabe-se, no entanto, que gostava de se masturbar em público e que o fazia despudoradamente. E sabe-se, também, que não viveu o tempo suficiente para dançar ao som do “Gimme, gimme, gimme a man after midnight” ou do “It's Raining Men - Hallelujah!”, nem para se desgraçar nas noites do Porto, nos idos anos 80, ao som dos Cães Vadios – a primeira banda portuguesa a fazer “puro-punk-rock'n'roll-de-rua”.

Tal como Diógenes, os Cães Vadios foram deliberadamente mal-educados, agressivos, provocadores. A imprensa odiava-os. E nós amávamos que eles fossem odiados. Íamos a todos os concertos, seguíamos a banda por todo o lado. Com o tempo outras foram surgindo, mas os Cães Vadios acabariam por ficar para a história como a banda de culto, mais obscura e misteriosa, do “puro-punk-rock'n'roll-de-rua” português. O mesmo se podia dizer do nosso cínico: o filosofo de culto, mais obscuro e misterioso da história do pensamento ocidental.

Apesar de todo este ‘folclore’ em torno da figura de Diógenes e para o qual este artigo assumidamente contribui, o leitor não deve confundir cinismo com hipocrisia: o primeiro é uma filosofia; o segundo, uma falha de carácter; o primeiro expõe-se; o segundo esconde-se; o primeiro pratica-se; o segundo evita-se.

Como já deve ter percebido, o cinismo é uma escola que me agrada. Agrada-me a atitude inconformista, a recusa em fazer parte da manada, o desafio às convenções sociais, ao politicamente correcto e aos poderes estabelecidos, o uso da ironia e do sarcasmo como arma, o espírito de contradição e o profundo desprezo por tudo aquilo que agita a humanidade: desejo, orgulho, medo, infelicidade, alegria, poder.

Agrada-me, ainda, que Diógenes tenha sido o primeiro filósofo verdadeiramente cosmopolita, por ter percebido que há mais vantagens em ser um cidadão do mundo do que em ser grego ou ateniense.

Porém, desagrada-me profundamente passar no metro da Cidade Universitária e perceber que aquela frase que se encontra escrita na parede – “não sou ateniense nem grego, mas sim um cidadão do mundo” – muito provavelmente escrita por Diógenes, é erradamente atribuída a Sócrates, que nunca escreveu uma linha.

Portanto, e recapitulando, sempre que o leitor der uma (ou levar, porque também se pode dar o caso) à canzana, lembre-se não só de Diógenes, mas também de que está a ser literalmente um “cão ágil”, um “cão brilhante”, um “verdadeiro cão”, e a pôr em prática uma filosofia bastante antiga. Resumindo, lembre-se de que está a ser cínico e que isso não é necessariamente mau. Muito pelo contrário. Por isso, aproveite e goze o momento.

JR

(escrito para a blah, blah, blah - revista do Lux-Frágil - em Abril de 2008)




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