quarta-feira, 15 de abril de 2009

O LADO COR-DE-ROSA DA HISTÓRIA





















A história que vos quero contar é uma história de amor. E como todas as boas histórias de amor está repleta de motivações: tem ciúmes e traições, crimes de sangue e defesas de honra, vinganças, lutas pelo poder, e tem também uma cereja no topo do bolo: jogos de sedução entre homens musculados e com nomes estranhos. A história que vos vou contar é cor-de-rosa, é verdade, porém de um rosa choque.

Convido-vos, por isso, a viajar do tempo. A andar uns séculos para trás. Vinte e seis, para ser mais preciso. Estamos em Atenas, em meados do séc. VI, e Cristo ainda não tinha andado pela terra, o que confere à história um grau de inocência difícil de compreender.

Por estes tempos Atenas era governada por dois tiranos – Hípias e o seu irmão Hiparco – sucessores e filhos de Pisístrato, homem que chegou ao poder pela força das armas e que introduziu a tirania como forma de governação da cidade.

Segundo testemunhos da época, seria Hípias o homem responsável pelo poder, já que o seu irmão levava uma vida extravagante, regada com música, vinho e poesia, preferindo a vertigem do prazer a coisas como a obrigação do dever ou a responsabilidade do poder.

Hiparco era um homem culto e a ele se deve o desenvolvimento das artes na cidade. Incentivou políticas de mecenato artístico e literário, rodeando-se na corte de poetas e músicos famosos, como Anacreonte,

Simónides e Laso. Hiparco era um tirano, mas um tirano sensível. Principalmente à beleza de jovens e corpulentos rapazes.

Assim, Hiparco acabaria por se apaixonar perdidamente por Harmódio, um jovem adolescente, lindo de morrer, conhecido por ser o preferido de Aristogíton, um cidadão de classe média, na casa dos 30, e também ele loucamente apaixonado pelo miúdo.

Seguindo os costumes da época, Harmódio terá dado conta ao amante e protector das intenções de Hiparco em lhe dar uns apertões contra uma parede.

Enciumado e com medo que o dinheiro e o poder de Hiparco seduzissem o jovem adolescente, Aristogíton projecta um plano, juntamente com outros atenienses descontentes, para acabar com a vida dos dois tiranos por altura de umas festas que se realizavam na época.

Hiparco, alheio a todas estas conspirações, continuou a tentar seduzir Harmódio, mas este acabaria por lhe dar uma grande tampa. Ferido no seu orgulho por não ver o seu amor correspondido, o sensível tirano pensou numa forma de devolver a

humilhação ao miúdo sem que o seu amante e protector percebesse a verdadeira razão. E se bem o pensou, melhor o fez. Hiparco convida então a irmã do puto a participar nas festas Pan-ateneias para depois lhe recusar a participação, sujeitando-a assim à humilhação pública.

Humilhados e ofendidos, Harmódio e Aristogíton decidem pôr em prática o plano para acabar com os dois tiranos. Porém, agem de forma precipitada e acabam apenas por matar Hiparco. No tumulto que se gerou, Harmódio acaba por ser morto pelos guardas. Aristogíton consegue fugir, mas mais tarde é feito prisioneiro e torturado até à morte.

Depois deste episódio, o braço pesado da tirania abate-se sobre os atenienses.

Hípias persegue e manda matar os cúmplices da morte do seu irmão e todos aqueles que lhe pareciam suspeitos. Porém, a vontade dos dois amantes acabaria por vencer e Hípias acabou por ser deposto e obrigado a fugir para o exílio.

Harmódio e Aristogíton acabariam, assim, por ser consagrados para sempre símbolos da liberdade e da democracia. E o melhor é que as suas motivações não se prendiam com ideais ou grandes utopias, ou com aquilo que eles entendiam ser o melhor para a humanidade, mas com sentimentos bem mais humanos e mais próximos de todos nós: amor, desejo, ciúme e traição.

Para que a democracia tivesse nascido, bastou apenas a beleza e a juventude de um adolescente, da qual um tirano se enamorou, e os ciúmes do seu amante. Não foram necessários líderes iluminados ou outras espécies de libertadores do povo, nem qualquer tipo de revoluções ou sublevações, de cariz popular ou militar, ou valores como a paz, pão, habitação, saúde…

Para mim, que não acredito no sentido demiúrgico da História, do progresso e do desenvolvimento humano, que desdenho de fantasias idealistas e de motivações revolucionárias, este é o bom da História, literalmente o seu lado cor-de-rosa, e no qual eu prefiro acreditar: houve um momento no tempo, pelo menos um, em que o amor entre dois homens foi capaz de mudar o mundo. E mudou.

(texto escrito para o Jornal Lux-Frágil)

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