sexta-feira, 13 de março de 2009

A PEGA DE BARCELOS

















Entrevistas impossíveis por JAR

Acusado de só entrevistar figuras estrangeiras, decidi começar 2009 por entrevistar aquele que é porventura um dos maiores símbolos do folclore nacional – o Galo de Barcelos.

Quem me conhece sabe que sou pouco dado a folclores e que nutro pouca simpatia por símbolos nacionais. Sabe também que não sou muito amigo da espécie galinácea, embora já me tenha acontecido comer um franguito, aqui e ali, e até tenha gostado.

Porém, esta era uma entrevista que se impunha. Contrariando o horóscopo chinês, 2008 não fora o ano do rato mas o ano do ganda-galo: começou com a crise dos cereais, passou pela crise petrolífera, seguiu pela crise financeira, para acabar com uma crise económica mundial. Maior galo era impossível, até porque os ratos ou abandonaram o navio ou foram presos. Mas adiante, porque isso agora também não interessa nada.

Havia, porém, uma coisa que me irritava no raio do bibelot: o facto de ele ser uma invenção do fascismo, um instrumento ideológico do Estado Novo, um souvenir de barro mal cozido ao serviço da “política do espírito” salazarista.

Meio contrafeito, decidi ligar para Barcelos. Mas da primeira vez, não consegui falar com ele. Andava a brincar na neve que caíra no início de Janeiro:

— Sabe, temos de aproveitar – disse–me mais tarde – Nevar é uma coisa rara aqui em Barcelos. Mas agora com o aquecimento global a coisa tem-se tornado mais frequente. Por vezes até neva no Verão. Mas é mau para a hortaliça. Os grelos e os nabos não se dão bem com o frio. A neve queima tudo e nem erva nasce – justificou-se.

— Estou muito surpreendido – respondi-lhe – Pensei que os bibelots estivessem sempre no mesmo sítio e que os passeios fossem limitados. No máximo uma volta entre a mesa da cozinha, o topo do frigorífico e o cimo da televisão. Isto sempre com um naperonzito como fundo.

— Não, nada disso. Isso eram os galos antigos. Eu sou uma versão pós-moderna do Galo de Barcelos, um resultado do chamado capitalismo tardio. Sou o Galo de Barcelos Snowborder, para ser mais concreto. Aquilo que vulgarmente se chama um Galo de autor.

Pelo cantar deste galo, via-se que andava a comer muita minhoca. Mas eu não quis aprofundar. Pelo menos por enquanto. A conversa haveria de continuar noutro lugar. Na Assembleia da República, na sala dos Passos Perdidos, para ser mais específico. Dizia ele que sentia um fascínio pelo poder. Eu preferia-lhe chamar poleiro.

— Sabia que é o segundo galináceo que entrevisto para este jornal?

— Ai sim?! E quem foi o primeiro? – perguntou curioso.

— Foi a galinha dos ovos de ouro. Mas essa já não está entre nós. Digamos que é galinha que já deu cabidela. Agora é esperar pela próxima. Já você, tem-se mantido…

— Não conhece a minha história? Deveria saber que faço milagres. Mesmo depois de morto e cozinhado, sou capaz de ganhar penas e voltar a voar. Não fora isso e o raio do galego teria morrido enforcado.

— Não está à espera que eu acredite nessa história – disse-lhe num tom sarcástico – toda a gente sabe que a sua história foi completamente inventada pelo Secretariado de Propaganda do Estado Novo. Pensa que me engana? Sei perfeitamente que você não passa de um fascista.

— Fascista, mas arrependido – reforçou com veemência.

Eu estava prestes a atingir o meu limite. Entrevistar um símbolo do fascismo já era mau. Entrevistar um símbolo do fascismo arrependido era uma coisa que não lembrava a ninguém.

— Fascista arrependido? – perguntei incrédulo – isso queria você. Na realidade não passa de um galo oco e com pés de barro. Uma lenda forjada para consumo turístico, muito pior que o Allgarve.

— Não fale assim comigo. Afinal de contas, forjado ou não, eu sou uma peça de design português – retorquiu.

— Uma peça de design – repeti com menosprezo – deve estar a pensar que alguém o vai convidar para a próxima edição da Experimenta. Esqueça lá isso. Você na realidade não é nada; nem uma peça de artesanato, dadas as quantidades em que você é produzido. E uma vez que se trata de um fascista arrependido, esvaziado de conteúdos ideológicos, diria mesmo que quando muito é uma peça de anti-design português que praticamente só existe em casa de brasileiros.

— Vamos mas é parar com esta conversa – gritou-me o Galo levantando a crista.

— Eh lá! Muita calminha – disse-lhe olhando-o nos olhos – Você aqui não manda calar ninguém; isso era no tempo da outra senhora.

— A culpa disto – disse-me cacarejando – a culpa disto é do comunista do Marcelo Caetano.

Com esta mandei-me para o chão. Já não aguentava tanto disparate. Já tinha ouvido chamar de tudo ao homem, mas comunista tinha sido a primeira vez.

— Não sei se já lhe disseram mas eu sou um excelente contador de anedotas.

— Por acaso desconhecia. Disseram–me muitas coisas a seu respeito mas que não abonam muito a seu favor.

— Ai sim? O quê, por exemplo?

— Que você não passava de um Galo capão, de gostos duvidosos, que usava coraçõezinhos abichanados, que gostava de cantar de galo, mas que faz de tudo para que lhe enfiem o dedo para ver se tinha ovo.

— Pois olhe que nem tudo é mentira – assentiu com ar sedutor – E agora que reparo bem em si, devo dizer-lhe que tem um ar bastante engraçado. Já experimentou uma foda à galo?

E foi aqui percebi que tinha chegado o meu momento. Acabei com o jogo do galo, fiz três-em-linha, e mandei-o ir cantar para outra freguesia.

(texto escrito para o Jornal Lux-Frágil)

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